sábado, 2 de janeiro de 2010

Vi sempre o mundo independentemente de mim.

Contudo

Contudo, contudo,
Também houve gládios e flâmulas de cores
Na Primavera do que sonhei de mim.
Também a esperança
Orvalhou os campos da minha visão involuntária,
Também tive quem também me sorrisse.
Hoje estou como se esse tivesse sido outro.
Quem fui não me lembra senão como uma história apenas.
Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo.

Caí pela escada abaixo subitamente,
E até o som de cair era a gargalhada da queda.
Cada degrau era a testemunha importuna e dura
Do ridículo que fiz de mim.

Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com que aparecesse,
Mas pobre também do que, sendo rico e nobre,
Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo.
Sou imparcial como a neve.
Nunca preferi o pobre ao rico,
Como, em mim, nunca preferi nada a nada.

Vi sempre o mundo independentemente de mim.
Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas,
Mas isso era outro mundo.
Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja.
Acima de tudo o mundo externo!
Eu que me agüente comigo e com os comigos de mim.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa

(1888-1935)

“Vi sempre o mundo independentemente de mim”, esse trecho me pegou, sinceramente estou há dias a pensar sobre isto, a primeira reação foi de identificação, porém cheguei à conclusão que não há como acreditar cegamente que vejo o mundo independente de mim, afinal se estamos presos a alguém esse alguém somos nós e nossos símbolos.

Fernando Pessoa em sua heteronímia (artifício de multiplicar-se em outros poetas com características tão próprias) se fazia Fernando Pessoa(s). “Vou mudando de personalidade, vou enriquecendo-me na capacidade de criar personalidades novas, novos tipos de fingir que se pode compreendê-lo.” Em Drama em gente assinado como Reis.

Para ver a vida como um todo é necessário o distanciamento de sí. Quebrar paradigmas, simbologias e tradições, pelo menos na sua cabeça por um breve momento, é isto que os atores, poetas, roteiristas, diretores, etc fazem em seu processo criativo. Porém essa tentativa de se desprender de si é muito útil na vida comum, para compreender o outro.
Fingir é conhecer-se, não há uma ordem de verdade no mundo.

“O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.”
Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa

A única maneira de brincar com a vida se transformar em outros é transcender pela arte, realizar esse feito, se desprendendo de todo o seu eu.

As crianças por estarem em fase de formação têm uma visão muito mais pura do mundo do que os adultos, por isso a facilidade da imaginação as brincadeiras, as fantasias, não podemos perder a pureza do olhar infantil de estar no mesmo lugar que passamos todos os dias observar o mesmo porém atento aos detalhes, assim sempre encontraremos algo novo, por que sempre estamos muito ocupados, preocupados, centrados em si não podendo olhar o mundo em volta , é como se tivéssemos uma nuvem de fumaça nos olhos. Além do visual, por que não também se aprofundar ao observar e se atentar aos detalhes humanos? Quem é ? O que está pensando?” Analisar suas feições, vestimentas e vê-lo como ser humano e não mais um “objeto da cidade”.

Em “ O estranho caso do cachorro morto” de Mark Haddon, a personagem principal Christopher Boone é autista, e repara em tudo em cada singularidade de um novo ambiente : “É por isso que não gosto de lugares novos... Mas a maioria das pessoas é preguiçosa. Elas nunca olham todas as coisas. Elas fazem o que é chamado olhar de passagem que quer dizer que elas vêem uma coisa mas não a enxergam, de verdade. E a informação que entra na cabeça delas é realmente muito simples.” A personagem explica que se está em um lugar novo repara em cada nova informação visual, o que chega a perturbá-lo pois é muita informação nova. Mas essa idiocrasia da personagem e os heterônimos de Fernando Pessoa me fazem querer cada vez mais me desprender de mim para sempre olhar o mundo de um novo modo, mesmo que seja sempre a mesma paisagem, a mesma pessoa, a mesma cidade, sempre há nova informação para aprofundarmos.

Esse é meu desejo para o começo de um novo ano! Vamos observar mais atentamente a vida, como algo novo nunca vivido, nunca visto, mais pureza no olhar, observar mais quem você já conhece para compreendê-lo melhor!

Feliz 2010!

Um comentário:

  1. Pol, muito bom o texto. Adorei a conclusão: se todo fim é um recomeço, novos olhares para coisas já conhecidas são necessários para continuarmos aprendendo sobre aquilo que já sabemos.

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